PERSONAGEM /
CAPA
50 ANOS DA BOSSA NOVA
Carlos Lyra
“Bossa Nova
provoca mudanças, aguça os ouvidos a cada detalhe”
Homenagear 50
anos da arte de fazer vida com a música ou música com a vida nos coloca ao lado
de Carlos Eduardo Lyra Barbosa, ou Carlos Lyra, um mito. Nascida em meio à
classe média, a Bossa Nova aprimorou a qualidade de formação da opinião, também
contribuindo para a evolução das artes, publicidade e, como assegura Lyra, “de
Recursos Humanos também”.
Canções como
“Primavera”, “Coisa Mais Linda”, “Quando Chegares” e muitas outras tratam de
pessoas, de relações. “O Tom (Jobim) é que gostava dessa história de paisagem,
praia, céu, montanha. Não tenho nada
contra esses temas, só que não é a minha praia. Minhas músicas sempre cuidaram
de relações ou conflitos pessoais”, justifica Lyra.
Ele fez muito
mais do que dezenas de discos (CDs e vinis), três livros e uma filha. Considerado
“um dos maiores melodistas de todos os tempos” e “uma figura elegante e ímpar”
por Tom Jobim e “capaz de unir ação ao pensamento e ao sentimento” na opinião
do amigo e “parceirinho” Vinicius de Moraes, Carlos Lyra escreveu (e escreve) –
ao lado destes dois ícones citados e mais Ronaldo Bôscoli, Baden Powell, João
Gilberto e Nara Leão - com tintas carregadas a história cultural brasileira.
Senão vejamos:
levou a Bossa Nova aos Estados Unidos e depois ao México e Japão; fundou o
Centro Popular de Cultura da UNE; uniu o samba de morro ao “samba de
apartamento” com Zé Kéti, João do Vale, Nelson Cavaquinho e Cartola facilitando
a criação de uma MPB brasileira; tocou ao lado de Stan Getz, legenda do jazz
americano popularizando bossa nova entre os ianques; musicou Millôr Fernandes,
Lope de Veja e Dias Gomes para citar alguns; fez música para filmes premiados e
foi gravado por centenas de músicos, compositores e intérpretes em todo o
mundo.
E hoje ainda
compõe muito para inúmeros intérpretes. Com tudo isso, Carlos Lyra não está nas
rádios e TVs por aqui. Entenda este e outros porquês, como o de a Bossa Nova
ter tudo a ver com RH, na entrevista que se segue.
NEWSLET – Por
que a Bossa Nova tanto muda a cabeça das pessoas no sentido do “saber-fazer”?
Mas
o termo “bossa” não é novo. Machado de Assis no conto “Helena” já dizia, através de um de seus personagens, “tu tens a
bossa das viagens e eu tenho a bossa do casamento”. “Bossa” sempre foi “uma forma
ousada de fazer algo”. Com aquela tranqüilidade política e econômica de 1958 (e
dos anos seguintes) havia inúmeros “surtos” culturais, como a Bossa Nova. A
classe média não estava achatada. Hoje temos economia forte, mas quase sem
classe média. E é a classe média quem cria cultura.
NEWSLET – E de
que forma a Bossa Nova se eterniza?
Carlos Lyra – Por
meio de uma classe média que, apesar do sofrimento, ainda detém a cultura
universitária. A Bossa Nova valoriza a forma de como se trabalha
qualitativamente a informação. Você não vai fazer Bossa Nova se não tiver ido
ao colégio, à universidade e se não tiver berço, freqüentar cinemas, teatros.
Não dá para fazer Bossa Nova sem este tipo de estofo.
NEWSLET – Por
que ela é muito mais tocada no exterior do que o samba ou o pagode, por
exemplo?
Carlos Lyra – Simples.
Por ser de classe média, a Bossa Nova tem uma capacidade de se comunicar
horizontalmente com qualquer classe média do mundo. E nem tanto de se comunicar
verticalmente com o nosso próprio povo. Faço shows freqüentes, por exemplo, no
Japão onde a Bossa Nova é adorada. O nosso povo não se identifica com a nossa a
classe média como a classe média do exterior o faz.
NEWSLET – Quase
não ouvimos Bossa Nova nas rádios brasileiras. É uma atitude comercial?
Carlos Lyra – Não.
É uma ignorância do Brasil, porque toca nas rádios dos Estados Unidos, América
Latina, Europa e Japão o dia inteiro. E não é problema de memória; infelizmente
90% dos brasileiros são destituídos de cultura.
NEWSLET – Alguns
gestores de pessoas confirmam que “ouvir Bossa Nova melhora as relações de
trabalho”. Como isso acontece?
Carlos Lyra – A
Bossa Nova oxigenou a cabeça das pessoas. Um estilo musical carregado de forte
cabedal cultural tem que interferir em tudo onde haja informação. A Bossa Nova
se eterniza porque não se restringe à música em si. É muito fácil para Recursos
Humanos se apropriar positivamente de elementos da Bossa Nova porque esta
nasceu para cuidar de pessoas em cada detalhe de suas letras. Todos os setores
do pensamento humano que se comunicam entre si, são de classe média. Por
exemplo, a publicidade não pode prescindir de RH, que não pode prescindir de
Economia, e por aí vai. Todos conversam entre si e vêem na Bossa Nova uma fonte
inesgotável.
NEWSLET – Para
você que estudou em um colégio culturalmente forte como o Santo Inácio (Rio) o brain storm diário também gerou muitas
letras?
Carlos Lyra –
Com certeza! Buscávamos nos aproximar de outros jovens que pensassem da mesma
maneira. As pessoas se procuravam para trocar idéias, para aprender. Pelo Santo
Inácio passaram o Vinicius de Moraes, o Jacques Klein, o Edu Lobo, o Cacá
Diegues, Fernando Barbosa Lima, Arnaldo Jabor, todo mundo que formou opinião na
cultura brasileira.
NEWSLET – RH
vive buscando fórmulas para unir competências. Qual é o segredo para unir talento,
ação e sentimento?
Carlos Lyra – O
segredo é você ser realmente uma pessoa com vocação artística e jamais desprezá-la.
Nesse caso, a tendência é conseguir unir esses elementos. A vocação faz com que
o ser humano junte idéias e pessoas para engrandecer essas idéias. Vinicius de
Moraes, por exemplo, foi um grande aglutinador de pessoas. Ele uniu o Tom Jobim
e o Baden (Powel) a mim, e depois o Toquinho, o Edu Lobo, o Francis Hime. Assim
a Bossa Nova gerava formadores de opinião.
NEWSLET –
Bossa Nova é troca de experiência. O que você pode falar do aprendizado com:
Tom Jobim? Vinicius de Moraes? Baden Powel? Nara Leão?
Carlos Lyra – Do
Vinicius de Moraes aprendi de um jeito muito informal lições de vida e o valor
da poesia de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros.
Minhas composições ficaram mais ricas. Qualquer conversa com o Vinicius vinha
carregada de informação cultural. Hoje não vejo isso na cultura brasileira.
Infelizmente as pessoas não vêem necessidade de trocar informação. Já o Tom
Jobim era um grande músico e fã meu. O Tom me incentivou muito no estudo da música.
Baden Powel era espetacular. Pessoa de origem humilde, tinha profundidade
musical ímpar e incrível facilidade de absorção das coisas de Pixinguinha. Não
era literário, mas sabia mesclar o afro com a bossa. Já a Nara Leão não era
musa, era música; uma pessoa participante.
NEWSLET – Como
você vê o empobrecimento da língua portuguesa em músicas como o funk, axé, pagode,
entre outros?
Carlos Lyra –
Hoje está em alta o consumo a todo custo e não mais a cultura ou a arte. Depois
do golpe militar de 1964 não houve mais preocupação com cultura e educação.
Conversei com estudantes de filosofia da atualidade que disseram “já ter ouvido
falar de um tal de Drummond de Andrade”; já uma repórter de conhecido periódico
carioca me pergunta se “eu canto música country”. Na livraria que entro para
pesquisar sobre teatro grego, o rapaz de lá pergunta “se falo de Shakespeare”.
Aí complica. É este o baixo nível da educação e cultura de hoje.
NEWSLET – Há
preocupação dos compositores e intérpretes com Educação hoje?
Carlos Lyra –
Não há nenhuma! O que existe é uma procura acelerada por informações a todo
custo pela Internet, mas, não se procura cultura. Informação não é exatamente
cultura. A cultura está no tipo de filtro de que faz da informação que se
recebe. Hoje a informação imediata e pasteurizada vence o prazer de saber o que
diziam as principais obras de Shakespeare, como “Macbeth”. A música, em geral,
está empobrecendo as pessoas. É desencorajador! É claro que há exceções como
Caetano Veloso, capaz de escrever coisas de categoria.
NEWSLET
– Você conseguiu unir a música da zona sul com a do morro (anos 60). Como foi
possível?
Carlos
Lyra – A
música de morro hoje não me interessa. Naquela época me interessava, porque o
Zé Kéti, o Cartola e o Nelson Cavaquinho tinham um talento musical espetacular.
Aquela música deles, possuía uma força
popular bonita e intuição inacreditável. O fruto da união desses caras com a
Bossa Nova gerou o que hoje chamamos de MPB (Música Popular Brasileira) e fez
surgir gente como Chico Buarque, Ivan Lins, Djavan, Milton Nascimento e muitos
outros.
NEWSLET
- Quem influenciou quem, a bossa nova ao jazz ou o jazz a bossa-nova?
Carlos
Lyra – As
duas coisas. A Bossa Nova primeiro teve uma influência do jazz west coast. Mas em um dado momento falamos: “gente, vamos
tomar cuidado para que isso não invada a nossa área, a nossa cultura”. Aí
começamos a dar injeções de brasilidade em nossas melodias. Assim a Bossa Nova
começou a influenciar o jazz.
NEWSLET
– Em que momento teve a consciência de que a Bossa Nova iria ganhar o mundo?
Carlos
Lyra –
Em 1962, quando fomos para o Carnegie Hall (Nova Iorque – EUA). Ali, quando vimos
(eu, Tom, João Gilberto, entre outros) aqueles “musos” americanos aos nossos
pés, Stan Getz, Gerry Mulligan, Chat Baker, “caiu a ficha”. Sentimos que
estávamos fazendo algo realmente importante. O convite pintou, na verdade, de
um gringo que tinha as piores intenções: só queria gravar as músicas para
vender e ganhar dinheiro. Apesar da bagunça, a Bossa Nova entrou, pelo Carnegie
Hall, nos Estados Unidos ao mesmo tempo em que os Beatles e deu muito certo!
NEWSLET
– Em 1964 você se exilou. Que importância o contato com outras culturas teve
para a sua inspiração criativa?
Carlos
Lyra – Abriu-me
mais horizontes, para começar com os músicos do jazz americano. Comecei a tocar
com o Stan Getz. Os músicos dele eram de primeira linha. Aprendi demais. Utilizava
o grupo do Stan Getz como um canal para abrir mais portas à Bossa Nova.
Curiosamente no México tive um banho de cultura muito maior do que nos EUA. Conheci
o cineasta Luís Buñuel, os diretores de teatro mexicanos, a literatura
espanhola, os artistas latinos, Gil Vicente, Calderón de La Barca , Juan Ruiz de Alarcón,
Lopez de Vega; tudo o que era lenda para mim. Gabriel Garcia Márquez foi meu
parceiro de gingle, conheci a obra “Os Cem Anos de Solidão” (1970) ainda
datilografada.
NEWSLET
– E a saudade do Brasil também influenciava na produção musical?
Carlos
Lyra –
Muito. Tanto é que só fazia música brasileira e a impunha aos povos que
visitava. É muito duro sentir saudade de um país. Não podia voltar porque
xingava um governo asqueroso. Na verdade eles censuravam mais o meu jeito de me
comunicar com as pessoas do que as minhas letras.
NEWSLET
- Que importância a produção do João Gilberto tem para a perpetuação da Bossa
Nova?
Carlos Lyra - A Bossa Nova foi criada
pelos compositores e interpretada por ele e não ao contrário. Se o João
Gilberto não tivesse as nossas composições não teria nada de Bossa Nova para
interpretar. A perpetuação da Bossa Nova se dá pelas constantes gravações de
vários artistas em todo o mundo e pelas criações de nós compositores. O João é
considerado por alguns como pai da Bossa Nova. Seu prestígio e importância são
indiscutíveis. Por ser o principal intérprete da Bossa Nova, não é correto
considerá-lo pai da mesma, como não seria correto considerar Frank Sinatra (o
maior intérprete norte-americano) como pai da canção norte-americana, negando
essa responsabilidade a compositores como Cole Porter e George Gerswhin.
NEWSLET
– A Bossa Nova tem naturalidade de unir “amor”, “climas”, “situações”. Isso em
um tempo onde havia tranqüilidade. E hoje é mais difícil fazer Bossa Nova?
Carlos
Lyra –
Olha, estou criando essas letras hoje em dia. Acabei de fazer uma para o Marcos Valle
exatamente como se eu estivesse nos anos 60.
NEWSLET
– E o quê exatamente te inspira a criar?
Carlos
Lyra –
Pessoas. As relações humanas. Desde minhas primeiras letras. “O que o seu pai
vai dizer; menina eu não presto não pra você, eu sou coisa ruim, será que você
quer que falem de você também, do jeito que falam de mim?” “Quando chegares aqui
podes entrar sem bater, liga a vitrola baixinho, espera o anoitecer....e quando
já for bem cedinho, não quero ouvir tua voz. Sai sem adeus de mansinho, esquece
o que houve entre nós”. São conflitos humanos. Lua não me dá conflitos. Antes
do termo Recursos Humanos ficar popular a Bossa Nova cuidava de pessoas. Minhas
músicas transportam pessoas para os sentimentos que podem ser amor, desilusão,
desamor, crises.
NEWSLET
– O quê de fato as pessoas aprendem ao cantar ou ouvir Bossa Nova?
Carlos
Lyra –
Para começar aprendem alguma coisa da língua portuguesa, o que está difícil de ouvir
e ler bem nos dias atuais, porque quem lê Vinicius de Moraes desenvolve demais a sua
capacidade de escrever melhor. A letra da Bossa Nova não é, contudo, somente
poesia. Inclusive tinha uma coisa que o Vinicius aprendia conosco da
simplicidade correta e coloquial. Não tem rebuscamento parnasiano. Você lê tão
naturalmente e mergulha no texto que nem percebe que é bem escrito. Este é o
texto ideal.
NEWSLET
- Como a Bossa Nova beneficia
profissionais que são cobrados a criar e inovar o tempo todo?
Carlos
Lyra - A Bossa Nova é inovadora por si
só. Dentro de uma mesma canção, tanto a melodia quanto a harmonia vão se
modificando e nunca se repetindo. Ela provoca mudanças e aguça os ouvidos que
estão sempre se surpreendendo com a novidade em cada detalhe. Isso pode servir
de estímulo para as criações em todas as áreas do conhecimento.
NEWSLET - Bossa Nova é o
“remédio” ideal contra o estresse?
Carlos Lyra – Sim. O público japonês, por exemplo, consome a
Bossa Nova porque a vida deles é muito estressada e eles são muito cobrados o
tempo todo. Então, quando chegam em casa, o que os relaxa são as músicas de
Bossa Nova. Elas têm uma função terapêutica por terem um ritmo suave e uma interpretação
cool, comportada.
NEWSLET
– Então Bossa Nova e Recursos Humanos têm tudo a ver?
Carlos
Lyra –
Bossa Nova e Recursos Humanos estão intimamente ligados, com certeza. Bossa
Nova é um Recursos Humano na real definição desta palavra. Pessoas que trabalham
com outras pessoas em qualquer empresa deveriam ouvir muita bossa nova até para
aprimorar seu jogo de cintura para lidar com qualquer relacionamento diário.
Seria muito construtivo que as organizações adotassem sessões de Bossa Nova
entre seus integrantes.
NEWSLET
- Tom Jobim, Caetano, Gil, Fernanda Montenegro, entre outros, te consideram um
mito e um pai da Bossa Nova. Afinal, quem é você?
Carlos
Lyra – Sou
um pouco de tudo isso que eles dizem, porque também sou um produto deles. Se
não fosse Fernanda Montenegro eu também não seria completo. Se não houvesse o
Tom Jobim fazendo o que ele fez eu também estaria curto. Se não fosse o
Caetano, o Gil e os Doces Bárbaros, a Maria Bethânia, eu não teria ganho tanto.
Eles me deram muito. Se sou um mito devo a todos eles!