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sábado, 13 de junho de 2015

FEMINISMO


Recentemente postei uma série de canções minhas que faziam frente à ditadura militar de 64. Agora resolvo postar uma nova série, também de minha autoria, com temas que dizem respeito à mulher - por quem tenho o maior carinho, curiosidade e inquietações culturais, as mais diversas. Não gosto de pensar em feminismo e sim na problemática da mulher, que por nascer da costela do homem já encerra em si uma série de injustiças. Repito, não me acho feminista mas já fui contemplado com esse termo algumas vezes. Minha amiga querida, Leila Pinheiro, reconheceu em mim um lado feminino que, se eu de fato o possuir  é, com toda certeza,  inteiramente lésbico. Platão também já possuía um pouco disso, quando concebeu o seu andrógeno.
De outra feita, numa entrevista, quando comentei ter brincado de bonecas com minha filha, chegando mesmo a confeccionar algumas roupinhas para elas, a jornalista  reafirmou que meu lado feminino era bem manifesto.  Na hora, mordido com a insinuação de que homens sensíveis tem que ser necessariamente femininos, contestei que o que se manifestava em mim era o melhor do meu lado masculino e o tal lado feminino só poderia ser, em mim - sem nenhuma auto-ofensa, ou grosseria - o de trás...                                            

Isso por não desconsiderar minha majestade olímpica de macho - nunca de machista, aliás - e da qual tenho o maior orgulho.

Assim é que, desde a minha primeira canção, composta em 1954, já me preocupava com nossa insensibilidade masculina em relação às mulheres. Muita gente achou que a letra confessava uma profissão de fé mas, ao contrário, era uma crítica e reconhecimento dessa insensibilidade, como se vê a seguir:  

QUANDO CHEGARES
(Carlos Lyra)

Quando chegares aqui
Podes entrar sem bater
Liga a vitrola baixinho
Espera o anoitecer

Logo que ouvires meus passos
Corre pra me receber
Sorri, me beija e me abraça
Não me perguntes por quê

Quando estiver em teus braços
Pensa somente em nós dois
Fecha de leve os teus olhos
E abre os teus lábios depois

E quando já for bem cedinho
Não quero ouvir tua voz
Sai sem adeus, de mansinho
E esquece o que houve entre nós...


Em 1957, durante uma classe de francês, escrevi a letra de minha canção Maria Ninguém. Não devo ter aproveitado muito daquela aula mas em compensação a francesinha Brigitte Bardot anos mais tarde gravaria a música e em português. Outra mulher famosa que prestigiou Maria Ninguém foi Jacqueline Kennedy, ao declarar que a canção era a sua preferida, da Bossa-Nova. O nome Maria Ninguém foi inspirado na música João Ninguém, de Noel Rosa. Na minha, o personagem masculino alega que, ele próprio, não sendo João de Nada, a mulher que lhe toca só pode ser Maria Ninguém.

Quando João Gilberto cantou a canção para Jorge Amado, o escritor exclamou arrebatado: “Esse cara é comuna!” - E note-se que era elogio...

MARIA NINGUÉM
(Carlos Lyra)

Pode ser que haja uma melhor, pode ser
Pode ser que haja uma pior, muito bem!
Mas igual a Maria que eu tenho
No mundo inteirinho, igualzinha não tem

Maria Ninguém
É Maria e é Maria meu bem
Se eu não sou João de nada
A Maria que é minha
É Maria Ninguém

Maria Ninguém
É Maria como as outras também
Só que tem que ainda é melhor
Do que muita Maria que há por aí
Marias tão frias
Cheias de manias
Marias vazias pro nome que têm

Maria Ninguém
É um dom
Que muito homem não tem
Haja visto quanta gente
Que  chama Maria
E Maria não vem

Maria Ninguém
É Maria
E é Maria meu bem
Se eu não sou João de nada
A Maria que é minha
É Maria Ninguém
Maria Ninguém

Anos mais tarde, fui inspirado por um capítulo do Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, sobre a menstruação feminina, onde ela descrevia a perplexidade da adolescente quando passava pelo constrangimento social das regras mensais que, além do desconforto, ainda apresentava um odor de violetas murchas. Isso me levou a compor a canção A lenda do Rio vermelho, que trata desse constrangimento que só se transforma em regozijo quando, depois de uma providencial interrupção do ciclo menstrual, a mulher se encontra apta para a maternidade.

 

A LENDA DO RIO VERMELHO

(Carlos Lyra)


Quanta melancolia
Num rosto de menina
Que sonha à margem do espelho
Que existe um rio vermelho
Que mancha de humano e de triste
Ao passar...

E o sonho esquece no mito
Que o rio era o mais bonito
De todos os rios que correm
Pro mar...

Foi de repente quando o rio apareceu
E no seu leito toda a terra escureceu
E violetas foram as flores que ele deu
E a menina no seu leito anoiteceu

Quanta ilusão perdida
Sombras de um rio triste
Que existe à beira da vida
Manchado de violetas
Que murcham no leito da lenda
Ao passar...

E a lenda esquece na vida
Que o rio era o mais amigo
De todos os rios que escorrem
Pro mar...

Foi de repente que o milagre aconteceu
E a voz do rio na nascente adormeceu
E num sorriso toda a terra floresceu
E a menina do seu sonho amanheceu

No meu disco Eu & elas incluí uma canção - Elas - que retrata a mulher desde a infância onde é tratada como brinquedo de louça, passando depois pela opressão da adolescência, onde o erotismo é quase sempre reprimido e mais tarde, pelo casamento que, apesar das honrosas exceções, em geral não deixa de ser um sórdido arranjo comercial. E, finalmente idosa, quando pela educação e já sem esperança, espera pela morte, não se ocupando mais do que com frequentar igrejas e cemitérios.

ELAS
(TOADA PARA MULHER)
(Carlos Lyra)

Desde a infância que repousa
Sobre o berço cor-de-rosa
Que de frágil se desmancha
 Elas dormem entre imagens
de boneca e de mulher

Onde a corpo se recorta
Quando a boca se avermelha
E a flor se descabela
Elas ardem no desejo
de objeto ou de mulher

E no amor de renda branca
Que o café de manhã cedo
Traz no dedo uma aliança
Elas são a tolerância
Que se alcança pelo preço
de uma casa de mulher

E elas velam sobre a morte
Que de preto se desfila
Que desfia em terço e pranto
Procissões de mães e filhas
Feito sombras de mulher...

Dando continuidade ao tema, quero abordar um tópico bastante delicado – o da mãe. É comum afirmar-se que a mãe judia é das mais possessivas. No meu entender mãe judia é pleonasmo - ou seja - toda mãe é, necessariamente, judia. A própria, ou os que assumem tal papel, são portadores de um amor maternal desmesurado ou um super-amor. É natural, portanto, que se achem defraudados por não receberem, na mesma medida, o amor intenso que oferecem, por não terem reconhecidos os inúmeros sacrifícios que não medem e, no fundo, não conseguirem  evitar uma dolorosa sensação de perda e ressentimento.
 A canção que segue, Super-amor, é apenas uma fantasia desse caso.

SUPERAMOR
(Carlos Lyra)

Nasceu
Eu mesmo batizei
Eu mesmo acalentei
E não me agradeceu

Cresceu
Eu mesmo alimentei
Eu mesmo que eduquei
E não me agradeceu

Tudo o que eu fiz
Foi pra nada
Tanto sacrifício
Pra nada
Ninguém trabalhou como eu

Eu que era o dono da rosa
Eu que pus o nome de Rosa
Ninguém cuidou mais
Do que eu

Morreu
Eu mesmo que matei
Eu mesmo que enterrei
Na terra onde nasceu...

A seguir gostaria de incluir uma canção escrita mais recentemente, menos dolorosa, que estabelece uma clara diferença entre o amor e a paixão. Quero crer que a maioria das mulheres se sente realmente mais amada através de um romance delicado e eterno do que através de uma paixão desenfreada. Eu, por meu lado e para desapontamento de muitos, nunca senti a capacidade de me apaixonar mas concedo-me o conforto de sentir, em contrapartida, uma  infinita capacidade de amar.
Nessa canção eu fiz a primeira parte da melodia, João Donato escreveu a segunda e eu compus a letra.

PRA SEMPRE
(Carlos Lyra & João Donato)

De onde vem um amor,
quando vem de repente?
E onde vai a paixão
que se esvai simplesmente?
De onde vem o querer de um amor
Que é prazer e que é dor?
De onde vem a esperança que aquece
E onde vai a ilusão que se esquece?

De onde vem o calor
que começa docemente?
E onde vai o ardor
que só cessa tristemente?
O que faz a esperança
Ser mais que a ilusão?
E um romance inocente
Ser mais que a paixão?
Que a paixão é fugaz
E um romance é pra sempre...

Para terminar, quero deixar aqui, uma canção que compus na mesma época de Quando chegares, ou seja, em 1954. A letra fala, na primeira pessoa, de alguém que encontra outro alguém muito especial, depois de muitos desacertos amorosos e o declarante pergunta a sua amada: Aonde andou você todo esse tempo? Permitam-me dedicar essa canção a minha mulher Magda, com a desculpa de que - apesar dessa letra ser uma inspiração apenas e não inspirada em ninguém - eu talvez a tenha escrito um tanto cedo demais.

AONDE ANDOU VOCÊ
(Carlos Lyra)

Aonde andou você
Todo esse tempo
Aonde andou você
Por tantos anos

Com você
Eu não teria contratempos
Com você
Eu não teria desenganos

E a vida não seria
Tão vazia com você
Por que tão tarde
Eu fui saber
Que existe alguém
Feito você?

E as horas tão felizes
Que eu teria com você
Tive cedo demais
E agora é tarde
Pra esquecer

Se os sonhos mais bonitos
Joguei fora sem saber
Que eu vinha a lamentar um dia
Por não saber,
Mas não sabia...

E a vida foi passando
Sem querer
Por tanto tempo
Aonde andou você...

Junho de 2015                       



quinta-feira, 11 de junho de 2015

A PERGUNTA MEDIEVAL QUE NÃO QUER CALAR



Na literatura da Idade Média era comum a presença de uma pergunta, em latim, o UBI SUNT? Significando Onde estão?  Era um questionamento que se referia à ausência de várias entidades e valores já então desaparecidos. Onde estão? Ou, Ubi sunt? – no caso, os reis, os castelos, os guerreiros, os cavaleiros, as damas, os trovadores, os menestréis, os magos, as bruxas, os dragões…etc.?

No Brasil de hoje, cabe lançar uma série de Ubi sunt - onde estão, por exemplo, os valores dos anos dourados e os do desenvolvimento que nos deu os 50 anos em 5 e a indústria autmobiística do goveno Kubistcheck? Onde está a arquitetura de Niemeyer, Lucio Costa e Burle Marx que nos deu Brasília? Onde está o surto de cultura que nos deu a literatura de Jorge Amado, Nelson Rodrigues e Suassuna? A Poesia Concreta de Ferreira Gullar, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos; o Cinema Novo de Glauber Rocha, Joaquim Pedro, León Hirshman e Carlos Diegues; os teatros TBC, Arena e Oficina, de São Paulo, tudo isso com o fundo musical da Bossa Nova. Onde estão os desportistas campeões do mundo como Maria Ester Bueno no tênis, Ademar Ferreira da Silva no salto tríplice, Eder Joffre no box, Pelé e Garrincha nas seleções vencedoras dos mundiais de 58 e 62 e last not least, Yeda Maria Vargas a Miss Universo, no mesmo período?

Se formos comparar, desde o governo Jânio Quadros que não temos descanso político, cultural ou educacional.  Cabe ainda perguntar: onde está o Estado da Guanabara que se transformou no melancólico balneário do Estado do Rio de Janeiro e cujo antigo governo Lacerda, apesar do caráter do governador, tinha nele o melhor dos administradores? Quanto à cultura, em lugar da vocação, ou seja, ocupar-se com o que se ama, está o empreguinho pelo dinheiro e nada mais. Em lugar da Bossa Nova, o funk. Do idioma nem se fala. As construções sintáticas e gramaticais, não apenas do “bolsa-família” mas também da maior parte da juventude universitária, ameaçam os humoristas de desemprego. 

Além da cultura e do idioma, o terceiro pilar na estrutura de um povo é a religião. Eu, por minha vez, como ateu e marxista (não Stalinista, não Maoista e não Castrista), não professo nenhuma, mas não posso deixar de estar entre os que consideram a religião como, além de riqueza cultural, âncora, esteio e mesmo freio da humanidade. Infelizmente, em nome de um esquerdismo canhoto e sinistro, prega-se o extermínio dos cultos religiosos. Onde está o respeito pelo direito de uma pessoa ser crente ou ateu? Com tantos Ubi sunt, temos uma impressão de tempos presentes ameaçadores, restando ficar com a máxima do poeta espanhol do século XV, Jorge Manrique que, na época, já afirmava: Qualquiera tiempo passado fué mejor.


C.L.  junho de 2015