Recentemente postei uma série de canções minhas que
faziam frente à ditadura militar de 64. Agora resolvo postar uma nova série,
também de minha autoria, com temas que dizem respeito à mulher - por quem tenho
o maior carinho, curiosidade e inquietações culturais, as mais diversas. Não
gosto de pensar em feminismo e sim na problemática da mulher, que por nascer da
costela do homem já encerra em si uma série de injustiças. Repito, não me acho
feminista mas já fui contemplado com esse termo algumas vezes. Minha amiga
querida, Leila Pinheiro, reconheceu em mim um lado feminino que, se eu de fato
o possuir é, com toda certeza, inteiramente lésbico. Platão também já possuía
um pouco disso, quando concebeu o seu andrógeno.
De outra feita, numa entrevista, quando comentei ter
brincado de bonecas com minha filha, chegando mesmo a confeccionar algumas
roupinhas para elas, a jornalista reafirmou que meu lado feminino era bem
manifesto. Na hora, mordido com a
insinuação de que homens sensíveis tem que ser necessariamente femininos, contestei
que o que se manifestava em mim era o melhor do meu lado masculino e o tal lado
feminino só poderia ser, em mim - sem nenhuma auto-ofensa, ou grosseria - o de trás...
Isso por não desconsiderar minha majestade olímpica de
macho - nunca de machista, aliás - e da qual tenho o maior orgulho.
Assim é que, desde a minha primeira canção, composta
em 1954, já me preocupava com nossa insensibilidade masculina em relação às mulheres.
Muita gente achou que a letra confessava uma profissão de fé mas, ao contrário,
era uma crítica e reconhecimento dessa insensibilidade, como se vê a
seguir:
QUANDO CHEGARES
(Carlos Lyra)
Quando chegares
aqui
Podes entrar
sem bater
Liga a vitrola baixinho
Espera o
anoitecer
Logo que ouvires meus passos
Corre pra me receber
Sorri, me beija e me abraça
Não me perguntes por quê
Quando estiver em teus braços
Pensa somente em nós dois
Fecha de leve os teus olhos
E abre os teus lábios depois
E quando já for
bem cedinho
Não quero ouvir tua voz
Sai sem adeus, de mansinho
E esquece o que houve entre nós...
Em 1957, durante uma classe de francês, escrevi a
letra de minha canção Maria Ninguém.
Não devo ter aproveitado muito daquela aula mas em compensação a francesinha
Brigitte Bardot anos mais tarde gravaria a música e em português. Outra mulher
famosa que prestigiou Maria Ninguém
foi Jacqueline Kennedy, ao declarar que a canção era a sua preferida, da
Bossa-Nova. O nome Maria
Ninguém foi inspirado na música João Ninguém, de Noel Rosa. Na minha, o personagem masculino alega
que, ele próprio, não sendo João de Nada,
a mulher que lhe toca só pode ser Maria
Ninguém.
Quando
João Gilberto cantou a canção para Jorge Amado, o escritor exclamou arrebatado:
“Esse cara é comuna!” - E note-se que
era elogio...
MARIA NINGUÉM
(Carlos Lyra)
Pode ser
que haja uma melhor, pode ser
Pode ser
que haja uma pior, muito bem!
Mas igual a
Maria que eu tenho
No mundo inteirinho,
igualzinha não tem
Maria
Ninguém
É Maria e é
Maria meu bem
Se eu não
sou João de nada
A Maria que
é minha
É Maria
Ninguém
Maria
Ninguém
É Maria
como as outras também
Só que tem
que ainda é melhor
Do que
muita Maria que há por aí
Marias tão
frias
Cheias de
manias
Marias
vazias pro nome que têm
Maria
Ninguém
É um dom
Que muito
homem não tem
Haja visto
quanta gente
Que chama Maria
E Maria não
vem
Maria
Ninguém
É Maria
E é Maria
meu bem
Se eu não
sou João de nada
A Maria que
é minha
É Maria Ninguém
Maria
Ninguém
Anos mais tarde, fui inspirado por um capítulo do Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir,
sobre a menstruação feminina, onde ela descrevia a perplexidade da adolescente
quando passava pelo constrangimento social das regras mensais que, além do desconforto, ainda apresentava um odor
de violetas murchas. Isso me levou a compor a canção A lenda do Rio vermelho, que trata desse constrangimento que só se
transforma em regozijo quando, depois de uma providencial interrupção do ciclo
menstrual, a mulher se encontra apta para a maternidade.
A LENDA DO RIO VERMELHO
(Carlos Lyra)
Quanta
melancolia
Num rosto de
menina
Que sonha à
margem do espelho
Que existe um
rio vermelho
Que mancha de
humano e de triste
Ao passar...
E o sonho esquece
no mito
Que o rio era o
mais bonito
De todos os
rios que correm
Pro mar...
Foi de repente
quando o rio apareceu
E no seu leito
toda a terra escureceu
E violetas
foram as flores que ele deu
E a menina no
seu leito anoiteceu
Quanta ilusão
perdida
Sombras de um
rio triste
Que existe à
beira da vida
Manchado de
violetas
Que murcham no
leito da lenda
Ao passar...
E a lenda
esquece na vida
Que o rio era o
mais amigo
De todos os
rios que escorrem
Pro mar...
Foi de repente
que o milagre aconteceu
E a voz do rio
na nascente adormeceu
E num sorriso
toda a terra floresceu
E a menina do
seu sonho amanheceu
No meu disco Eu
& elas incluí uma canção - Elas -
que retrata a mulher desde a infância onde é tratada como brinquedo de
louça, passando depois pela opressão da adolescência, onde o erotismo é quase
sempre reprimido e mais tarde, pelo casamento que, apesar das honrosas exceções,
em geral não deixa de ser um sórdido arranjo comercial. E, finalmente idosa,
quando pela educação e já sem esperança, espera pela morte, não se ocupando
mais do que com frequentar igrejas e cemitérios.
ELAS
(TOADA
PARA MULHER)
(Carlos Lyra)
Desde a
infância que repousa
Sobre o
berço cor-de-rosa
Que de
frágil se desmancha
Elas dormem entre imagens
de
boneca e de mulher
Onde a corpo
se recorta
Quando
a boca se avermelha
E a
flor se descabela
Elas
ardem no desejo
de
objeto ou de mulher
E no
amor de renda branca
Que o
café de manhã cedo
Traz no
dedo uma aliança
Elas
são a tolerância
Que se
alcança pelo preço
de uma
casa de mulher
E elas
velam sobre a morte
Que de
preto se desfila
Que
desfia em terço e pranto
Procissões
de mães e filhas
Feito sombras de mulher...
Dando continuidade ao tema, quero abordar
um tópico bastante delicado – o da mãe. É comum afirmar-se que a mãe judia é
das mais possessivas. No meu entender mãe
judia é pleonasmo - ou seja - toda mãe é, necessariamente, judia. A própria,
ou os que assumem tal papel, são portadores de um amor maternal desmesurado ou
um super-amor. É natural, portanto,
que se achem defraudados por não receberem, na mesma medida, o amor intenso que
oferecem, por não terem reconhecidos os inúmeros sacrifícios que não medem e,
no fundo, não conseguirem evitar uma
dolorosa sensação de perda e ressentimento.
A canção que segue, Super-amor, é apenas uma fantasia desse caso.
SUPERAMOR
(Carlos Lyra)
Nasceu
Eu mesmo batizei
Eu mesmo acalentei
E não me agradeceu
Cresceu
Eu mesmo alimentei
Eu mesmo que eduquei
E não me agradeceu
Tudo o que eu fiz
Foi pra nada
Tanto sacrifício
Pra nada
Ninguém trabalhou como eu
Eu que era o dono da rosa
Eu que pus o nome de Rosa
Ninguém cuidou mais
Do que eu
Morreu
Eu mesmo que matei
Eu mesmo que enterrei
Na terra onde nasceu...
A seguir gostaria de incluir uma canção escrita mais
recentemente, menos dolorosa, que estabelece uma clara diferença entre o amor e
a paixão. Quero crer que a maioria das mulheres se sente realmente mais amada
através de um romance delicado e eterno do que através de uma paixão desenfreada.
Eu, por meu lado e para desapontamento de muitos, nunca senti a capacidade de
me apaixonar mas concedo-me o conforto de sentir, em contrapartida, uma infinita capacidade de amar.
Nessa canção eu fiz a primeira parte da melodia, João
Donato escreveu a segunda e eu compus a letra.
PRA SEMPRE
(Carlos Lyra
& João Donato)
De onde vem
um amor,
quando vem de
repente?
E onde vai a
paixão
que se esvai
simplesmente?
De onde vem o
querer de um amor
Que é prazer
e que é dor?
De onde vem a
esperança que aquece
E onde vai a
ilusão que se esquece?
De onde vem o
calor
que começa
docemente?
E onde vai o
ardor
que só cessa
tristemente?
O que faz a
esperança
Ser mais que
a ilusão?
E um romance
inocente
Ser mais que
a paixão?
Que a paixão
é fugaz
E um romance
é pra sempre...
Para terminar, quero deixar aqui, uma canção que
compus na mesma época de Quando chegares,
ou seja, em 1954. A letra fala, na primeira pessoa, de alguém que encontra outro
alguém muito especial, depois de muitos desacertos amorosos e o declarante
pergunta a sua amada: Aonde andou você
todo esse tempo? Permitam-me dedicar essa canção a minha mulher Magda, com
a desculpa de que - apesar dessa letra ser uma inspiração apenas e não
inspirada em ninguém - eu talvez a tenha escrito um tanto cedo demais.
AONDE ANDOU VOCÊ
(Carlos Lyra)
Aonde andou
você
Todo esse tempo
Aonde andou
você
Por tantos anos
Com você
Eu não teria
contratempos
Com você
Eu não teria
desenganos
E a vida não
seria
Tão vazia com
você
Por que tão
tarde
Eu fui saber
Que existe
alguém
Feito você?
E as horas tão
felizes
Que eu teria
com você
Tive cedo
demais
E agora é tarde
Pra esquecer
Se os sonhos
mais bonitos
Joguei fora sem
saber
Que eu vinha a
lamentar um dia
Por não saber,
Mas não
sabia...
E a vida foi
passando
Sem querer
Por tanto tempo
Aonde andou
você...
Junho de 2015